Teologia Sistemática
O mal e a agencia de Deus – Parte 2
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No primeiro artigo aprendemos que o mal natural é uma maldição que Deus colocou sobre o mundo em reação ao pecado humano.
Também vimos, que Deus realmente endurece corações e, por meio dos seus profetas, prediz atividades humanas pecaminosas com grande antecedência, indicando que ele tem controle sobre as decisões humanas livres.
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Ora, os teólogos descobriram que é difícil formular em termos gerais como Deus age para fazer ocorrer essas ações pecaminosas.
No artigo anterior sobre o problema do mal analisamos o argumento de Gilson de que Deus não é a” causa do pecado e do mal por que o mal não é existente” e, portanto, não tem causa.
O Mal e Agência de Deus
Gilson está disposto a afirmar que Deus é a causa deficiente (que soa como um contraste a causa eficiente), significando que Deus cria seres mutáveis, mas não determina os defeitos específicos que constituem pecado.
John Frame considera inadequadas a teoria de privação e a sua visão da liberdade libertaria. Todavia, a discussão da origem a uma pergunta na qual todos precisamos pensar.
Desejamos afirmar que Deus é a “causa” do mal? Essa linguagem certamente é problemática, visto que geralmente associamos causa com culpa. Considere Myke, que fez Billy pichar a porta da escola.
Evidentemente Billy fez as marcas, mas Mike o levou a fazer isso. Portanto, a maioria de nós concordaria que Mike merece a culpa. Assim, parece que, se Deus causa o pecado e o mal, ele deve ser considerado culpado por isso.
Dessa maneira, há muito debate entre teólogos a respeito de qual verbo descreve melhor a agencia divina em reação ao mal.
Algumas possibilidades iniciais:
“É o autor de, faz ocorrer, causa, controla, cria, decreta, preordena, incita, inclui no seu plano, faz acontecer, ordena, permite, planeja, predestina, predetermina, produz, está por traz de, deseja”.
Muitos desses termos são extrabíblicos, nenhum deles é perfeitamente fácil de definir nesse contexto. Assim, os teólogos precisam pensar cuidadosamente sobre qual desses termos de ver ser usado, se algum deles pode ser, e em que sentido.
As palavras são instrumentos dos teólogos. Numa situação dessas, nenhuma das possibilidades é completamente adequada. Há várias vantagens e desvantagens em cada um dos termos.
Consideraremos alguns daqueles que são mais frequentemente debatidos.
A expressão ser o autor de é condenada quase universalmente na literatura teológica. Raramente é definida, mas parece significar tato que Deus é a causa eficiente do mal quanto que Deus.
Ao causar o mal, de fato faz algo errado. Desse a modo, CFW afirma que Deus “não pode ser o autor do pecado nem aprova-lo”(5.4).
A despeito dessa negação numa confissão reformada importante, os arminianos regularmente acusam a teologia reformada de tornar Deus o autor do pecado.
Eles assumem que, se Deus faz o mal ocorrer de alguma maneira, ele o aprova e merece a culpa. Na visão deles, nada menos que a liberdade libertaria serve para livrar Deus da acusação de ser o autor do pecado.
Porém a liberdade libertaria é incoerente e não Bíblica
Como vimos Deus faz com que ocorram ações humanas pecaminosas. Negar isso, ou acusar Deus de perversidade por causa disso, não é algo possível para um cristão que crê na Bíblia.
De alguma maneira, precisamos confessar tanto que Deus tem um papel na concretização do mal quanto que, ao fazê-lo, ele é santo e inculpável.
No artigo anterior, tentei mostrar como a defesa do bem maior, se entendida corretamente, apoia essa confissão.
Deus faz realmente ocorrerem os pecados, mas sempre para os seus próprios bons propósitos. Assim, ao fazer acontecer o pecado, ele mesmo não comete.
Se esse argumento é coerente, então a doutrina reformada da soberania divina não implica que Deus seja o autor do pecado.
Causar é outro termo que tem gerado muita discussão entre os teólogos
Como lembramos, Gilson, da tradição tomista, nega que Deus seja a causa do mal ao definir o mal como uma privação.
Os escritores reformados também negam que Deus seja a causa do pecado. João Calvino ensina: “Pois a causa correta e verdadeira do pecado não é o conselho oculto de Deus.
Mas a evidente vontade do homem”, embora no contexto ele também afirme que a queda de Adão não foi “sem conhecimento e a ordenação de Deus”, alguns outros exemplos:
“Cuide para não fazer de Deus o autor do pecado, acusando o seu decreto sagrado pelos erros dos homens, como se ele fosse a causa ou ocasião para eles.
Isso por que temos certeza de que não é, nem pode ser, mais do que o sol pode ser a causa da escuridão”.
“É Deus quem criou, preserva e dirige todas as coisas, bem como atua nelas. Porém, não deriva de modo algum, dessas premissas, que Deus.
É, então, a causa do pecado, pois o pecado nada mais é do anomia, ilegalidade, falta de conformidade com a lei divina (1 Jo. 3.4), uma mera privação de retidão, consequentemente.
Sendo, em si mesmo algo puramente negativo, não pode ter nenhuma causa positiva ou eficiente, mas apenas uma negativa ou deficiente, como diversos eruditos já indicaram”.
Observações Importantes
Contudo, observe também que, embora Calvino rejeite causa, ele afirma ordenação. Deus não é a causa do pecado, mas este ocorre pela sua ordenação. Para o leitor de hoje, a distinção não é evidente.
Ordenar é causar e vice-versa. Se a casualidade acarreta culpa, então ordenação parece acarreta-la também, se não, nenhuma das duas a acarreta.
Todavia, é evidente que no vocabulário de Calvino e dos seus sucessores havia uma diferença entre os dois termos. Para nós, a questão é se Deus pode ser a causa eficiente do pecado sem ser culpado por ele.
Os teólogos mais antigos negam que Deus seja a causa eficiente do pecado (a) por que defendem a teoria da privação. E (b) por que identificam causa com autoria.
Porém, se rejeitarmos a teoria da privação, como recomendei, se como – acredito – a conexão entre causa e culpa na linguagem de hoje não é mais forte do que a conexão entre ordenação e culpa.
Então me pare que não é errado afirmar que Deus causa o mal e o pecado. No entanto, devemos empregar esta linguagem com cautela, devido á longa história da sua rejeição na tradição.
A Visão Calvinista Sobre a Ação do Mal
É interessante que Calvino use causa ao se referir á agencia divina em fazer ocorrer o mal, quando distingue entre Deus como “a causa remota” e a agencia humana como a “causa imediata”.
Ao argumentar que Deus não é o “autor do pecado”, ele afirma que a “causa imediata é uma coisa, a causa remota é outra”.
Calvino salienta que, quando os perversos roubam os bens de Jó, este reconhece que “o Senhor o deu e o Senhor o tomou; bendito seja o nome do Senhor!” (Jó 1.21).
Os ladrões, a causa imediata do mal, são culpados, mas Jó não questiona os motivos do Senhor, a causa remota. Porém, Calvino não acredita que a distinção entre imediata e última seja para nos mostrar por que Deus não tem culpa:
“Porem, como foi ordenado pela presciência e decreto de Deus qual seria o futuro do homem, sem Deus ser implicado como associado na deficiência como autor e aprovador da transgressão.
É claramente um segredo tão acima da percepção da mente humana que não me envergonho em confessar ignorância”.
A Distinção Entre o Bem e o Mal
Ele usa a distinção entre imediata e remota simplesmente para distinguir entre a causalidade de Deus e das criaturas e, desse modo, para afirmar que o primeiro é sempre justo. No entanto, ele não acredita que a distinção resolva o problema do mal.
De fato, ela não resolve por que, como no exemplo de Billy e Mike, temos boas razoes em diversas situações para associar a causalidade remota (Mike) com a culpa, as vezes até chagando a eliminar a culpa da causa imediata (Billy).
Seria errado generalizar a partir do exemplo de Billy e Mike para provar que Deus é culpado pelo pecado humano.
Certamente os motivos de Deus são bem diferentes daqueles de Mike no nosso exemplo. Contudo, não podemos provar que Deus não deve levar a culpa, simplesmente indicando que ele é apenas a causa remota.
A analise acima indica, no mínimo, que Calvino está disposto, em alguns contextos, a se referir a Deus como a causa do pecado e do mal. Calvino também descreve Deus como a causa única do endurecimento e da reprovação dos perversos:
“Portanto, se não podemos atribuir nenhuma razão para sua concessão de misericórdia ao seu povo além do seu agrado, também não temos nenhum motivo para sua reprovação dos outros, além de sua vontade.
Quando é dito que visita com misericórdia ou endurece a quem ele quer, lembra-se aos homens que não devem buscar nenhuma causa além da vontade dele”.
Considere agora o termo permite
Esse termo preferido na teologia arminiana, na qual corresponde a negar que Deus cause o pecado. Para o arminiano, Deus não causa o pecado, ele apenas permite.
No entanto, os teólogos reformados também usam o termo ao se referirem á relação de Deus com o pecado.
Contudo, de modo contrário aos arminianos, os reformados insistem que a “permissão” divina ao pecado não é menos eficaz do que a sua ordenação do bem. Calvino nega que haja qualquer “simples permissão” em Deus:
“A partir disso, é fácil concluir o quanto é tolo e frágil o embasamento da justiça proporcionada pela sugestão de que males existem não pela vontade de (Deus), mas meramente pela sua permissão.
É claro, por serem males os quais os homens perpetram com as suas mentes más, como mostrarei mais destalhes em breve, admito que não são agradáveis a Deus.
Porém, é um refúgio bastante frívolo afirmar que Deus os permite ociosamente, quando as Escrituras o mostram não apenas querendo-as, mas como sendo o autor deles”.
Se a permissão divina é eficaz, como ela difere de outros exercícios da sua vontade?
Evidentemente, os reformados usam permite principalmente como o termo mais delicado doque causa e para indicar que Deus faz ocorrer o pecado com um tipo de relutância que provém do seu santo ódio do mal.
Esse uso reflete um padrão bíblico: quando Satanás age, ele o faz, num sentido óbvio, pela permissão de Deus. Deus permite que ele tire a família, a riqueza e a saúde de Jó.
Mas não permite que Satanás tire a vida de Jó. (Jó 2.6). Portanto, Satanás está sobre a rédea curta, agindo apenas dentro dos limites fixados por Deus.
Quanto a isto, todos os atos pecaminosos são semelhantes. O pecado só pode ir até certo ponto antes de se deparar com o juízo divino.
Portanto, é correto usar permissão para se referir à ordenação divina do pecado. Todavia, não devemos assumir, como fazem os arminianos, que a permissão divina é algo menor que a ordenação soberana.
Oque Deus permite acontecer acontecerá. Deus certamente poderia ter impedido o ataque de Satanás a Jó, se desejasse. Por não ter impedido o ataque, fica implícito que ele desejou que tivesse ocorrido.
Então a permissão é uma forma de ordenação, uma forma de causação. O fato de que, ás vezes, é compreendida de outro modo é um bom argumento contra o uso do termo, mas talvez não seja um argumento decisivo.
Nenhuma dessas formulações resolve o problema do mal
Não é uma solução afirmar que Deus ordena o mal, mas não é seu autor ou a sua causa (se escolhermos afirmar isso).
Essa linguagem não soluciona o problema, mas é apenas um modo de explica-lo. Isso porque o problema do mal questiona como Deus pode ordenar o mal sem ser o seu autor.
E, como ressalta Calvino, a distinção entre a causa remota e imediata também é inadequada para responder às perguntas diante de nós; não importa quão útil seja para afirmar de quem é a culpa pelo mal.
Nem é a solução afirmar que Deus permite, em vez de ordenar, o mal. Como vimos, a permissão divina é tão eficaz quanto a sua ordenação. A diferença entre os termos não traz nada à luz que resolva o problema.
No entanto, devo afirmar algo a mais acerca da natureza da agência divina quanto ao mal. Pensemos no modelo do escritor e da sua história: os relacionamentos de Deus com seus agentes livres é como o relacionamento de um escritor com seus personagens.
Consideramos até que ponto o relacionamento divino com o pecado humano é como o de Shakespeare com Macbeth, o assassino de Duncan.
A Visão de Shakspeare e Macbeth
Empresto a ilustração de Shakspeare e Macbeth da excelente GTS de Wayne Grudem. Porém, discordo de Grudem num ponto.
Ele afirma que podemos dizer que tanto Macbeth quanto Shakspeare “mataram o rei Duncan”. Concordo, é claro, que os dois – Macbeth e Shakspeare – são responsáveis, em níveis diferentes de realidade, pela morte de Duncan.
Contudo, quando analiso a linguagem que usamos comumente nesses contextos, parece-me claro que normalmente não diríamos que Shakspeare matou Duncan. Shakspeare inseriu o assassinato na sua peça.
No entanto, o assassinato ocorreu no mundo da peça, não no mundo real do escritor. Foi Macbeth quem o executou, não Shakspeare.
Percebemos a correção da justiça poética que cai sobre Macbeth pelo seu crime. Todavia, certamente consideraríamos muito injusto se Shakspeare fosse jugado e condenado à morte pela morte de Duncan.
Ninguém sugere que há qualquer problema em conciliar a benevolência de Shakspeare com a sua onipotência com o mundo do drama.
De fato, temos motivos para louvar Shakspeare pela criação deste personagem, Macbeth, para nos mostrar as consequências do pecado.
Diferentes Níveis do Mal e Suas Ações
Então, a diferença entre os níveis pode ter importância moral, assim como metafísica. Pode esclarecer poque os escritores bíblicos, os quais não hesitam em afirmar que Deus faz ocorrer o pecado e o mal, não são tentados a acusa-lo de má conduta.
Evidentemente, a relação entre Deus e nós mesmo é diferente em certos aspectos daquela entre um escritor e seus personagens. De modo mais significativo: nós somos reais; Macbeth, não.
No entanto, entre Deus e nós há uma vasta diferença no tipo de realidade e na posição relativa. Deus é o absoluto controlador e autoridade, o fato mais presente da natureza e da História.
Ele é o Legislador; nós, os recebedores da lei. Ele é o cabeça da aliança; nós, os servos. Ele planejou a criação para sua própria glória; nós buscamos a sua glória, não a nossa.
Ele nos fez como o oleiro faz vasos, para os seus próprios propósitos. Essas diferenças não colocam Deus numa categoria moral diferente também?
Deus e Sua Transcedência
A própria transcendência de Deus tem um papel significativo nas reações bíblicas ao problema do mal.
Visto que Deus é quem é, o Senhor da aliança, ele não precisa se defender de acusações de injustiça.
Ele é o juiz, não nós. Frequentemente, nas Escrituras, quando ocorre algo que coloca em dúvida á bondade divina, Deus explicitamente se abstém de dar explicações.
De fato, ele geralmente repreende os seres humanos que o questionam. Jó exigiu uma entrevista com Deus, a fim de lhe pedir as razões do seu sofrimento (Jó 23.1-7; 31. 35-37).
Porém, quando se encontrou com Deus, foi este quem fez as perguntas: “Cinge, pois os lombos como homem, pois eu te perguntarei, e tu me farás saber” (38.3).
As perguntas revelaram principalmente e ignorância de Jó a respeito da criação de Deus: se ele não entende o viver dos animais, como acha que pode questionar os motivos divinos?
Ele nem compreende as coisas terrenas; como acha que pode debater as coisas celestiais? Deus não está sujeito as avaliações ignorantes de suas criaturas.
O Oleiro e o Barro – Seu Verdadeiro Significado
É significativo que a imagem do oleiro e do barro apareça no único lugar, mas Escrituras em que o problema do mal é tratado explicitamente.
Em Romanos 9. 19-21, Paulo apela especificamente á diferença na posição e nivel metafisico em Criador e a criatura:
Tu, porém, me dirás: De que se queixa ele ainda? Pois quem jamais resistiu a sua vontade? Quem és tu, ó homem, para discutires com Deus?
Porventura, pode o objeto perguntar a quem o fez: Por que me fizeste assim? Ou não tem o oleiro direito sobre a massa, para do mesmo barro fazer um vaso para honra e outro, para desonra?
Essa resposta ao problema do mal está inteiramente baseada na soberania divina
Está tão distante quando se pode imaginar de uma defesa do livre-arbítrio. Traz á nossa atenção o fato de que as prerrogativas dele são muitos maiores do que as nossas, como faz o modelo escritor-personagem.
Portanto, embora possamos reverentemente perguntar a Deus por que ele traz sofrimento para a nossa vida, não temos nenhum direito de fazer acusações com ele.
Deus está completamente dentro dos seus direitos quando não responde acusações, implícitas ou explicitas, de má conduta, como frequentemente ocorre nas Escrituras.
De fato, ao ser acusado de agir incorretamente, ele comumente vira as acusações contra o acusador (como em Mt 20. 15 –16 ; Rm 9. 19-21).
Pode-se objetar que esse modelo torna Deus o autor do mal. Mas essa objeção, ao meu ver, confunde os dois sentidos de autor.
Como vimos, a expressão autor do mal não apenas indica a causalidade do mal, mas também a culpa por ele. “Ser o autor de” o mal é pratica-lo.
No entanto, ao afirmar que Deus se relaciona com o mundo com um escritor com uma história, de fato provemos um modelo de perceber que Deus não deve ser culpado pelo pecado das suas criaturas.
Considerações Finais Sobre o Mal e a Agência de Deus
Essa, é claro, não a única resposta bíblica ao problema do mal. Às vezes Deus não reage silenciando-nos, como mencionamos antes, mas mostrando-nos em alguma medida como o mal contribui para o seu plano, chamei isso de defesa do bem maior.
A defesa do bem maior refere-se particularmente ao atributo do senhorio divino de controle: Deus é soberano sobre o mal e o usa para o bem.
A reposta de Romanos 9 refere-se particularmente ao atributo do senhorio de autoridade. E o seu atributo da presença divina lida com o problema emocional do mal, consolando-nos com as promessas divinas e com o amor de Jesus, do qual nenhum.
Mas pode nos separar (Rm 8. 35-39), e prometendo-nos que no último dia nosso coração confessará. E até cantará, a justiça divina, sem ser perturbado pelo mal (Ap 15. 3-4).
Portanto, a resposta ao problema do mal pode ser descrita tri-perspectivamente:
Normativa: os seres humanos não tem direito algum de fazer acusações contra Deus
Situacional: Deus sempre transformara o mal em bem.
Existencial: Deus nos consolara de maneira que o nosso coração esteja completamente certo da justiça e da retidão de suas ações.
